sábado, 31 de agosto de 2019

Fotojornalismo - um olhar do repórter


No final de algumas acções de formação em que participámos, muitos jovens afirmavam a sua vontade de virem a ser repórteres fotográficos, como se fosse uma endemia vocacional.
Há classes profissionais que propiciam fascínio — médicos, polícias, jornalistas, juristas, bombeiros e outras. É a visão romântica que as torna atractivas. A sociedade, de um modo geral, tem a ideia de que estes profissionais possuem o poder de transfomar o mundo.
As imagens de televisão mostram, nos seus "planos de corte", o repórter-fotográfico em acção, com as suas aparatosas máquinas e objectivas em riste, nos gabinetes ministeriais ou nos palcos de guerra; nos tribunais, nos estádios e em espaços onde campeia a conflitualidade. O espectáculo, o estar perto dos poderes e a actuação sobre o fio da navalha fazem do repórter um herói e uma testemunha privilegiada dos acontecimentos que são notícia.
Não é por acaso que o cinema tem dedicado algumas películas à nossa actividade, em que o protagonista é um repórter-fotográfico. El SalvadorDebaixo de fogoBlow up - a história de um fotógrafoPrimeira página e Repórter indiscreto, para referir os mais conhecidos. Como não será pura coincidência, o facto de todos os filmes relacionarem as aventuras dos fotógrafos de imprensa com a violência e a morte.
A angústia, a dor, o sofrimento humano, o mórbido, são apenas exemplos das fotos de imprensa mais premiadas. Os grandes prémios de fotojornalismo, normalmente, contemplam imagens chocantes — guerra, tragédias, cataclismos, tumultos, conflitos sociais, racismo. Isso porque o fotojornalista "estava lá" em pessoa, testemunhou os factos, registou-os e transmitiu-os à sua maneira.
A World Press Photo, edição de 2001, distinguiu um trabalho do jornalista dinamarquês Erik Refner, entre 50 mil fotos presentes a concurso, que retrata o cadáver de uma criança a ser preparado para o enterro, num campo de refugiados do Paquistão.
O fotojornalista é visto como alguém que se furta ao convencional; ao social e politicamente correctos. Temos, por vezes, de fugir à ortodoxia e à normalidade, embora sem desvios éticos e de deontologia para se conseguir desempenhar a missão, dada a dificuldade em transpor os muros altos dos poderes instalados, que condicionam a nossa actividade, mais do que a de qualquer outro jornalista.
Somos uma espécie de intrusos, com a particularidade de nos movimentarmos com relativa descontracção. As pessoas já se habituaram à nossa presença. Há casos em que até fazemos parte do "happening". Somos queridos e desejados; detestados e odiados; às vezes, simplesmente tolerados; outras vezes, somos a esperança dos que já a perderam há muito.
O nosso trabalho favorece a visibilidade do real acontecido, consonante com a "verdade dos factos", o que nem sempre é assim tão linear. A ficção audiovisual dá uma ideia do mundo que as pessoas interiorizam, mas são as fotos de imprensa aquelas que chocam e são a imagem daqueles que não têm direito à opinião e à imagem física e moral, próprias da sua condição humana.
Deve ter-se em conta o carácter polissémico da foto de imprensa. Tudo depende não apenas dos ângulos de observação, sempre subjectivos, mas também dum conjunto multifacetado de circunstâncias. As imagens de uma carga policial são diferentes, colhidas do lado dos polícias ou do outro. Mas ela é sempre um testemunho forte. É por isso que, nos casos mais "quentes", os intervenientes, as fontes, dão o nome e a opinião, mas não dão a cara, hostilizando até a presença do repórter-fotográfico quando a situação não lhes agrada. A máquina fotográfica chega a ser tão perigosa como uma arma, havendo quem diga que é pior. "You shoot, I shoot"!
Há situações em que o fotojornalista é aquele que proporciona o "momento de glória", mais ou menos efémero, ao registar uma imagem no jornal, tornando-a perene. Em alguns aspectos, a foto pode até transformar-se na "verdade duma mentira", sobretudo se o repórter é afastado do caminho que leva a foto até às colunas do jornal. Às vezes, o trabalho é instrumentalizado, tornando-se num encapotado meio propagandístico de eventos.
Nesta disciplina jornalística, chamemos-lhe assim, há um percurso histórico por um lado cativante e credibilizador e, por outro, responsabilizante e aliciante para o futuro. Os repórteres fotográficos conheceram a sua "época dourada" no primeiro quartel do século XX, na sequência da grande evolução tecnológica que o mundo vivia — os "loucos anos vinte". As tecnologias, que são o "motor de arranque" da evolução da humanidade, estão aí para relançar o fotojornalismo, fazendo-o evoluir no sentido da mediação entre os leitores e a realidade social, numa mundividência de tendências globalizantes e, paradoxalmente, tão cheia de contradições.
Estaremos preparados para assumir essa evolução? Hoje, é a foto e o sistema digitais que se afirmam como "motor tecnológico", reduzindo bastante alguns condicionalismos com que nos debatemos diariamente, embora trazendo novos problemas e perigos, como a manipulação digital da imagem ou fotomontagem, entre outros.
O repórter tem a sua "janela de observação" na sociedade onde ele próprio se insere e movimenta, numa relação comunicacional quotidiana. Estamos subordinados à lógica dos acontecimentos, mas também condicionamos essa mesma lógica. Comunicar (do lat. comunicatio), quer dizer, "pôr em comum", é o que fazemos numa dimensão onto-antropológica de ser com os outros, utilizando a linguagem fotográfica. Melhor, fotojornalística.
Na essência, somos jornalistas de corpo inteiro, talhados para a notícia, para a reportagem, para a entrevista. Não somos fotógrafos no sentido mais pragmático e clássico do termo, cujo fim é a fotografia em si mesma.
A razão de ser da "fotografia de imprensa" é o jornalismo. Estamos aqui a debater o fotojornalismo e não a fotografia em outra dimensão qualquer.
O fotojornalista é um operador da fragmentaridade. É ele que escolhe "isto" e não "aquilo" no momento de registar na película (no suporte digital, mais ainda) aquela fracção de segundo de algo que aconteceu e merece ser notado — daí, ser notícia. Esta é a razão perceptiva que o legitima como jornalista.
O repórter imprime e exprime a sua subjectividade relativa, tendo em conta o jornal onde trabalha. É preciso ter em conta a diversificação temática e sociológica e as especificidades dos jornais, relativamente aos respectivos segmentos de leitores-alvo. A fotografia do «Público» é diferente da do «Jornal de Notícias»; o «Diário de Notícias» distingue-se bem do «Correio da Manhã»; este do «24 Horas» e assim por diante.

Acesso à profissão e mercado de trabalho

Quantos fotojornalistas há em Portugal? A Comissão da Carteira Profissional de Jornalista não distingue, na sua base de dados, os repórteres-fotográficos do universo dos jornalistas, que são mais de seis mil. O Sindicato dos Jornalistas regista aproximadamente 240 fotojornalistas, num universo de 4200 associados. No total, haverá três centenas e meia de fotojornalistas em Portugal, mas nem todos em exclusividade.
Como é que se chega à profissão? Quanto custa ser fotojornalista? Há ou não há mercado de trabalho em Portugal?
É de considerar, a este respeito, pelo menos duas realidades distintas: uma, que se relaciona com os jornais ditos de expansão nacional (diários, semanários e on line) e agência Lusa; a outra, referente aos jornais de expansão regional e local.
No primeiro caso, a relação do fotojornalista com o jornal é típica. O repórter-fotográfico entra ao serviço, depois de passar por formação, académica ou profissional, seguida de estágio. Existe vínculo à empresa, salário enquadrado contratualmente e ainda subsídio para o desgaste dos equipamentos, quando não é o jornal que os fornece, excepcionalmente. Os órgãos de Comunicação Social recorrem, também, a colaboradores fotográficos, alguns remunerados por avença. Nas redacções regionais, são poucas aquelas que incorporam no seu quadro um fotojornalista. No caso de Viseu, nem um.
Os profissionais dessas empresas, mesmo trabalhando fora das sedes e dos grandes centros, são os mais prestigiados, apesar de tudo. Mas é-lhes exigido um trabalho de grande desgaste físico e psicológico. Temos de percorrer, aceleradamente, longas distâncias, sozinhos, e fazer num dia centenas de quilómetros ao volante para trazermos uma foto e raramente somos compreendidos pelas sedes.
Às vezes, recebemos ordem para ir "ali" a Penamacor ou ao Rosmaninhal, o que implica mais de seis horas sentado ao volante de um veículo, em alta velocidade, sob quaisquer condições climatéricas, para fazer uma reportagem ou, simplesmente, para fazer a foto de uma personalidade para a edição do dia seguinte.
Nos jornais de expansão regional e local, a situação é muito diferente. A realidade da região centro do país - aquela que conhecemos melhor, apesar de sabermos que não destoa muito das outras — está longe de ser considerada normal. Os jornais funcionam como "escola" sem mestre e os repórteres são recrutados segundo critérios economicistas, que não têm a ver com o fotojornalismo. Isto, apesar de se considerar que o futuro está na imprensa regional, como sucede em alguns países.
O gosto por esta profissão tão fascinante, vai justificando quase tudo, com os jovens à espera de melhores dias e de uma oportunidade para fazer carreira, se as necessidades mais elementares não os obrigarem a mudar de vida, entretanto.
Um fotojornalista investe entre dez mil e quinze mil euros (dois mil a três mil contos), se pensarmos em equipamento digital profissional de primeira linha. Quase se poderia dizer, pois, que há quem tenha de "pagar para trabalhar"...
Mercado de trabalho, existe. Mas não podemos considerar um mercado de trabalho como há dez ou vinte anos atrás. As condições são diferentes e a tendência aponta para um aumento de profissionais em número e em qualidade, a avaliar pela procura dos media, que começa a ser selectiva, e pelas exigências na preparação académica e profissional dos fotojornalistas.
Outra questão a considerar é o local onde se desempenha a actividade. Uma coisa é exercer a profissão em Lisboa ou no Porto e outra é fazê-lo fora dessas metrópoles, onde existem menos oportunidades de trabalho e consideração pela classe. Em alguns distritos do nosso país nem sequer há fotojornalistas profissionais exclusivos, como é o caso de Viseu , Guarda, Castelo Branco e outros.
Alguém disse que "o fotojornalismo existe porque acontecem coisas importantes que só a imagem consegue reflectir". Por maioria de razão, podemos dizer que só um fotojornalista devidamente qualificado conseguirá cumprir essa tal missão de reportar o que de importante acontece. Isto merece uma reflexão.

Formação académica e profissional

Não passa pela cabeça de ninguém admitir ao serviço numa redacção, um jornalista sem formação, ainda que transpirasse talento. Exige-se a licenciatura, além de outras capacidades que o período experimental se encarregará de demonstrar, ou não.
E um repórter-fotográfico? Que se exige dele? Quais são as suas ferramentas, além das máquinas e das lentes? — falamos aqui de utensílios mentais; de formação académica ou profissional. Que sabe ele de sociedade, política, cultura, desporto, problemática autárquica?
Se um jornal pretende contratar um jornalista-fotógrafo, devia questionar o conteúdo programático específico do seu Curso. Ora, em muitos casos, não há.
Alguns estudantes confessaram-me que gostariam de enveredar pelo fotojornalismo, desmotivando-se por carência de estudos nessa área. Outros, dizem que é mais prestigiante o jornalismo escrito — mais barato e mais leve, acrescento eu.
Formação profissional existe. Mas só em Lisboa e Porto, no Cenjor e em algumas escolas profissionais. Mas isto tem de ser reanalisado. Será vantajoso este tipo de formação de base, ou deverá optar-se pelo ensino de nível superior, dadas as exigências para o desempenho da função de fotojornalista? E que ensino de jornalismo é feito nos variadíssimos cursos existentes no nosso país?
Citando Furio Colombo, "É ao fotojornalista que a realidade concede aquele instante único que altera para sempre a experiência de todos". Por isso, há toda a vantagem em dignificar a profissão e o fotojornalista.

Que fotojornalismo se faz por cá?

Um estudo efectuado no terreno, que abrangeu os distritos de Coimbra, Viseu, Aveiro e Leiria, aponta carências no domínio da formação académica e profissional, ao mesmo tempo que releva o facto de, fora dos grandes centros, o exercício da profissão de fotojornalista ser quase insipiente. A um número significativo de títulos de imprensa - mais de 180 -, corresponde apenas 22 fotojornalistas.
Pode questionar-se a qualidade da fotografia de imprensa, sobretudo no distrito de Viseu, onde não há fotojornalistas profissionais, devidamente formados. Isto, apesar de considerar que há boas fotos de imprensa em alguns títulos viseenses. Mas é pouco e desgarrado de um contexto — basta olhar para as fichas técnicas dos jornais.
A ideia do dito estudo era aferir as relações dos repórteres com os OCS nos seus vários aspectos; a importância que o fotojornalismo tem na região em análise; o perfil dos que fazem a fotografia de imprensa e o seu "estatuto" perante a profissão.
Os resultados reflectem alguma frustração daqueles que abraçaram ou gostariam de abraçar esta "profissão de fé", como diz Mário Mesquita, mas que acabam sem a esperança de o conseguir ou nas mãos de empresários que aceitam jovens fotojornalistas como que por caridade.
Coimbra é o distrito que tem mais fotojornalistas - 13 -, num universo de 44 Ocs escrita. Viseu, com 41 espaços editoriais, praticamente não tem fotojornalistas nos seus quadros profissionais. Os acontecimentos mais mediáticos da região são cobertos por profissionais deslocados dos grandes centros, havendo quem trabalhe simultaneamente para quatro ou cinco OCS.
O estudo permite concluir que, com excepção dos jornais diários de expansão nacional e agência Lusa, os órgãos da imprensa escrita negligenciam o fotojornalismo, com algumas excepções.
Diz-se que o fotojornalismo está em crise — também ele. Não parece que esta crise, a existir, seja motivada pelo desinteresse dos leitores — que são, ou deveriam ser, a razão principal da nossa existência como profissionais da imprensa. Há é uma certa lógica emanente dos contextos políticos e, sobretudo, económicos e empresariais.
O problema é, acima de tudo, económico, embora não justifique tudo. Por isso, recorre-se a todos os meios para emagrecer os orçamentos das empresas de comunicação social, começando a poupança nas admissões de fotojornalistas. Basta olhar para as redacções e constatar as proporções. Muitas vezes, pura e simplesmente, não têm fotojornalistas nos quadros. Pode-se perguntar: então, como é que aparecem imagens nos jornais?
Encontramos, também, na dinâmica das redacções, algumas das causas da "crise do fotojornalismo". Michel Guerrin, crítico fotográfico do «Le Monde» (curiosamente um jornal que tem preterido a imagem nas suas páginas, actualmente em esforço de sobrevivência), afirma que o problema radica em que "…quem decide que fotos se publicam não é quem tem o conhecimento". O estudo confirma-o.
Outra condicionante para o fotojornalismo resulta do facto de, em muitos jornais, mesmo de expansão nacional, os jornalistas desempenharem a sua actividade de forma demasiado polivalente. O redactor é, simultaneamente, fotógrafo, sem qualquer preparação técnica ou fotojornalística, utilizando máquinas de baixa qualidade, expondo-se publicamente ao ridículo e contribuindo para a desvalorização de texto e foto.
Tal como no automobilismo há quem corra em F1, F2, rallyes, ou, simplesmente utiliza o veículo como utilitário, algo análogo acontece com o fotojornalismo. Isto, pese embora o facto de haver algumas fotos de boa qualidade, feitas por redactores e outros não fotojornalistas — a minha mãe confeccionava excelente culinária, mas não era cozinheira.
Formação deficiente, universitária ou de outra natureza, é aquela que não inclui e aprofunda os estudos fotojornalísticos. Ensina-se jornalismo, ciências da comunicação ou da informação, mas as cadeiras de fotojornalismo são ainda uma raridade. Há universidades de referência, onde o ensino do fotojornalismo é uma miragem no plano curricular.
Paradoxalmente, a prática do fotojornalismo não se ensina, o que não quer dizer que não se aprenda. É por isso que existem os estágios, a fim de facilitar a aprendizagem de dentro para fora e não ao contrário. É no terreno, dia a dia, que se faz, ou não, o fotojornalista.
Uma redacção tem de ser composta por jornalistas e fotojornalistas formados correctamente e em situação de igualdade e dignidade académica. Têm em comum o facto de serem autores e trabalharem um produto social da maior importância.
Cruzando análises de vários estudiosos do fenómeno da comunicação social, constata-se que, como qualquer ciência social, o jornalismo e o fotojornalismo vivem uma situação de "carrefour". No entanto, não há fotojornalismo sem fotojornalistas, sob pena de se descaracterizar a própria essência do jornalismo.
As empresas de comunicação social escrita já não se assumem como projectos jornalísticos românticos de outrora, mas sim como unidades empresariais, com uma lógica pura de mercado (da publicidade e outras influências), mais próximas dos interesses do público do que do "interesse público", expressão cada vez mais desgastada e revivalista.
Não haja ilusões. Estão aí novas realidades. Mais cedo ou mais tarde, o fotojornalismo terá o seu espaço bem delimitado. Só um fotojornalista devidamente formado estará apto a cumprir a sua acção comunicacional. O trabalho não poderá ser menorizado ou secundarizado. Fotografia e texto, na imprensa, são as duas faces de uma moeda altamente cotada no mundo da comunicação.
O fotojornalismo apresenta-se como um "retrato desfocado" num presente "bastante tremido". É preciso dar-lhe a possibilidade de se desenvolver ao ritmo das necessidades sociais — o que actualmente não acontece.
É ao fotojornalista que cabe lutar pela dignificação da sua profissão para atingir o nível desejado, que é aquele em que o leitor estabelece com ele uma relação de lealdade e credibilidade — de memória, afectividade, cumplicidade




























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