No final de algumas acções de formação em que participámos, muitos jovens afirmavam a sua vontade de virem a ser repórteres fotográficos, como se fosse uma endemia vocacional.
Há classes profissionais que propiciam fascínio — médicos,
polícias, jornalistas, juristas, bombeiros e outras. É a visão romântica que as
torna atractivas. A sociedade, de um modo geral, tem a ideia de que estes
profissionais possuem o poder de transfomar o mundo.
As imagens de televisão mostram, nos seus "planos de
corte", o repórter-fotográfico em acção, com as suas aparatosas máquinas e
objectivas em riste, nos gabinetes ministeriais ou nos palcos de guerra; nos
tribunais, nos estádios e em espaços onde campeia a conflitualidade. O
espectáculo, o estar perto dos poderes e a actuação sobre o fio da navalha
fazem do repórter um herói e uma testemunha privilegiada dos acontecimentos que
são notícia.
Não é por acaso que o cinema tem dedicado algumas películas à
nossa actividade, em que o protagonista é um repórter-fotográfico. El
Salvador; Debaixo de fogo; Blow up - a
história de um fotógrafo; Primeira página e Repórter
indiscreto, para referir os mais conhecidos. Como não será pura
coincidência, o facto de todos os filmes relacionarem as aventuras dos
fotógrafos de imprensa com a violência e a morte.
A angústia, a dor, o sofrimento humano, o mórbido, são apenas
exemplos das fotos de imprensa mais premiadas. Os grandes prémios de
fotojornalismo, normalmente, contemplam imagens chocantes — guerra, tragédias,
cataclismos, tumultos, conflitos sociais, racismo. Isso porque o fotojornalista
"estava lá" em pessoa, testemunhou os factos, registou-os e
transmitiu-os à sua maneira.
A World Press Photo, edição de 2001, distinguiu um trabalho do
jornalista dinamarquês Erik Refner, entre 50 mil fotos presentes a concurso,
que retrata o cadáver de uma criança a ser preparado para o enterro, num campo
de refugiados do Paquistão.
O fotojornalista é visto como alguém que se furta ao convencional;
ao social e politicamente correctos. Temos, por vezes, de fugir à ortodoxia e à
normalidade, embora sem desvios éticos e de deontologia para se conseguir
desempenhar a missão, dada a dificuldade em transpor os muros altos dos poderes
instalados, que condicionam a nossa actividade, mais do que a de qualquer outro
jornalista.
Somos uma espécie de intrusos, com a particularidade de nos
movimentarmos com relativa descontracção. As pessoas já se habituaram à nossa
presença. Há casos em que até fazemos parte do "happening". Somos
queridos e desejados; detestados e odiados; às vezes, simplesmente tolerados;
outras vezes, somos a esperança dos que já a perderam há muito.
O nosso trabalho favorece a visibilidade do real acontecido,
consonante com a "verdade dos factos", o que nem sempre é assim tão
linear. A ficção audiovisual dá uma ideia do mundo que as pessoas interiorizam,
mas são as fotos de imprensa aquelas que chocam e são a imagem daqueles que não
têm direito à opinião e à imagem física e moral, próprias da sua condição
humana.
Deve ter-se em conta o carácter polissémico da foto de imprensa.
Tudo depende não apenas dos ângulos de observação, sempre subjectivos, mas
também dum conjunto multifacetado de circunstâncias. As imagens de uma carga policial
são diferentes, colhidas do lado dos polícias ou do outro. Mas ela é sempre um
testemunho forte. É por isso que, nos casos mais "quentes", os
intervenientes, as fontes, dão o nome e a opinião, mas não dão a cara,
hostilizando até a presença do repórter-fotográfico quando a situação não lhes
agrada. A máquina fotográfica chega a ser tão perigosa como uma arma, havendo
quem diga que é pior. "You shoot, I shoot"!
Há situações em que o fotojornalista é aquele que proporciona o
"momento de glória", mais ou menos efémero, ao registar uma imagem no
jornal, tornando-a perene. Em alguns aspectos, a foto pode até transformar-se
na "verdade duma mentira", sobretudo se o repórter é afastado do
caminho que leva a foto até às colunas do jornal. Às vezes, o trabalho é
instrumentalizado, tornando-se num encapotado meio propagandístico de eventos.
Nesta disciplina jornalística, chamemos-lhe assim, há um percurso
histórico por um lado cativante e credibilizador e, por outro,
responsabilizante e aliciante para o futuro. Os repórteres fotográficos
conheceram a sua "época dourada" no primeiro quartel do século XX, na
sequência da grande evolução tecnológica que o mundo vivia — os "loucos
anos vinte". As tecnologias, que são o "motor de arranque" da
evolução da humanidade, estão aí para relançar o fotojornalismo, fazendo-o
evoluir no sentido da mediação entre os leitores e a realidade social, numa
mundividência de tendências globalizantes e, paradoxalmente, tão cheia de
contradições.
Estaremos preparados para assumir essa evolução? Hoje, é a foto e
o sistema digitais que se afirmam como "motor tecnológico", reduzindo
bastante alguns condicionalismos com que nos debatemos diariamente, embora
trazendo novos problemas e perigos, como a manipulação digital da imagem ou
fotomontagem, entre outros.
O repórter tem a sua "janela de observação" na sociedade
onde ele próprio se insere e movimenta, numa relação comunicacional quotidiana.
Estamos subordinados à lógica dos acontecimentos, mas também condicionamos essa
mesma lógica. Comunicar (do lat. comunicatio), quer dizer, "pôr em
comum", é o que fazemos numa dimensão onto-antropológica de ser com os
outros, utilizando a linguagem fotográfica. Melhor, fotojornalística.
Na essência, somos jornalistas de corpo inteiro, talhados para a
notícia, para a reportagem, para a entrevista. Não somos fotógrafos no sentido
mais pragmático e clássico do termo, cujo fim é a fotografia em si mesma.
A razão de ser da "fotografia de imprensa" é o
jornalismo. Estamos aqui a debater o fotojornalismo e não a fotografia em outra
dimensão qualquer.
O fotojornalista é um operador da fragmentaridade. É ele que
escolhe "isto" e não "aquilo" no momento de registar na
película (no suporte digital, mais ainda) aquela fracção de segundo de algo que
aconteceu e merece ser notado — daí, ser notícia. Esta é a razão perceptiva que
o legitima como jornalista.
O repórter imprime e exprime a sua subjectividade relativa, tendo
em conta o jornal onde trabalha. É preciso ter em conta a diversificação
temática e sociológica e as especificidades dos jornais, relativamente aos
respectivos segmentos de leitores-alvo. A fotografia do «Público» é diferente
da do «Jornal de Notícias»; o «Diário de Notícias» distingue-se bem do «Correio
da Manhã»; este do «24 Horas» e assim por diante.
Quantos fotojornalistas há em Portugal? A Comissão da Carteira
Profissional de Jornalista não distingue, na sua base de dados, os
repórteres-fotográficos do universo dos jornalistas, que são mais de seis mil.
O Sindicato dos Jornalistas regista aproximadamente 240 fotojornalistas, num
universo de 4200 associados. No total, haverá três centenas e meia de
fotojornalistas em Portugal, mas nem todos em exclusividade.
Como é que se chega à profissão? Quanto custa ser fotojornalista?
Há ou não há mercado de trabalho em Portugal?
É de considerar, a este respeito, pelo menos duas realidades
distintas: uma, que se relaciona com os jornais ditos de expansão nacional
(diários, semanários e on line) e agência Lusa; a outra, referente aos jornais
de expansão regional e local.
No primeiro caso, a relação do fotojornalista com o jornal é
típica. O repórter-fotográfico entra ao serviço, depois de passar por formação,
académica ou profissional, seguida de estágio. Existe vínculo à empresa,
salário enquadrado contratualmente e ainda subsídio para o desgaste dos
equipamentos, quando não é o jornal que os fornece, excepcionalmente. Os órgãos
de Comunicação Social recorrem, também, a colaboradores fotográficos, alguns
remunerados por avença. Nas redacções regionais, são poucas aquelas que
incorporam no seu quadro um fotojornalista. No caso de Viseu, nem um.
Os profissionais dessas empresas, mesmo trabalhando fora das sedes
e dos grandes centros, são os mais prestigiados, apesar de tudo. Mas é-lhes
exigido um trabalho de grande desgaste físico e psicológico. Temos de
percorrer, aceleradamente, longas distâncias, sozinhos, e fazer num dia
centenas de quilómetros ao volante para trazermos uma foto e raramente somos
compreendidos pelas sedes.
Às vezes, recebemos ordem para ir "ali" a Penamacor ou
ao Rosmaninhal, o que implica mais de seis horas sentado ao volante de um
veículo, em alta velocidade, sob quaisquer condições climatéricas, para fazer
uma reportagem ou, simplesmente, para fazer a foto de uma personalidade para a
edição do dia seguinte.
Nos jornais de expansão regional e local, a situação é muito
diferente. A realidade da região centro do país - aquela que conhecemos melhor,
apesar de sabermos que não destoa muito das outras — está longe de ser
considerada normal. Os jornais funcionam como "escola" sem mestre e
os repórteres são recrutados segundo critérios economicistas, que não têm a ver
com o fotojornalismo. Isto, apesar de se considerar que o futuro está na
imprensa regional, como sucede em alguns países.
O gosto por esta profissão tão fascinante, vai justificando quase
tudo, com os jovens à espera de melhores dias e de uma oportunidade para fazer
carreira, se as necessidades mais elementares não os obrigarem a mudar de vida,
entretanto.
Um fotojornalista investe entre dez mil e quinze mil euros (dois
mil a três mil contos), se pensarmos em equipamento digital profissional de
primeira linha. Quase se poderia dizer, pois, que há quem tenha de "pagar
para trabalhar"...
Mercado de trabalho, existe. Mas não podemos considerar um mercado
de trabalho como há dez ou vinte anos atrás. As condições são diferentes e a
tendência aponta para um aumento de profissionais em número e em qualidade, a
avaliar pela procura dos media, que começa a ser selectiva, e pelas exigências
na preparação académica e profissional dos fotojornalistas.
Outra questão a considerar é o local onde se desempenha a
actividade. Uma coisa é exercer a profissão em Lisboa ou no Porto e outra é
fazê-lo fora dessas metrópoles, onde existem menos oportunidades de trabalho e
consideração pela classe. Em alguns distritos do nosso país nem sequer há
fotojornalistas profissionais exclusivos, como é o caso de Viseu , Guarda,
Castelo Branco e outros.
Alguém disse que "o fotojornalismo existe porque acontecem
coisas importantes que só a imagem consegue reflectir". Por maioria de
razão, podemos dizer que só um fotojornalista devidamente qualificado conseguirá
cumprir essa tal missão de reportar o que de importante acontece. Isto merece
uma reflexão.
Não passa pela cabeça de ninguém admitir ao serviço numa redacção,
um jornalista sem formação, ainda que transpirasse talento. Exige-se a
licenciatura, além de outras capacidades que o período experimental se
encarregará de demonstrar, ou não.
E um repórter-fotográfico? Que se exige dele? Quais são as suas
ferramentas, além das máquinas e das lentes? — falamos aqui de utensílios
mentais; de formação académica ou profissional. Que sabe ele de sociedade,
política, cultura, desporto, problemática autárquica?
Se um jornal pretende contratar um jornalista-fotógrafo, devia
questionar o conteúdo programático específico do seu Curso. Ora, em muitos
casos, não há.
Alguns estudantes confessaram-me que gostariam de enveredar pelo
fotojornalismo, desmotivando-se por carência de estudos nessa área. Outros,
dizem que é mais prestigiante o jornalismo escrito — mais barato e mais leve,
acrescento eu.
Formação profissional existe. Mas só em Lisboa e Porto, no Cenjor
e em algumas escolas profissionais. Mas isto tem de ser reanalisado. Será
vantajoso este tipo de formação de base, ou deverá optar-se pelo ensino de
nível superior, dadas as exigências para o desempenho da função de
fotojornalista? E que ensino de jornalismo é feito nos variadíssimos cursos
existentes no nosso país?
Citando Furio Colombo, "É ao fotojornalista que a realidade
concede aquele instante único que altera para sempre a experiência de
todos". Por isso, há toda a vantagem em dignificar a profissão e o
fotojornalista.
Um estudo efectuado no terreno, que abrangeu os distritos de
Coimbra, Viseu, Aveiro e Leiria, aponta carências no domínio da formação
académica e profissional, ao mesmo tempo que releva o facto de, fora dos
grandes centros, o exercício da profissão de fotojornalista ser quase
insipiente. A um número significativo de títulos de imprensa - mais de 180 -,
corresponde apenas 22 fotojornalistas.
Pode questionar-se a qualidade da fotografia de imprensa,
sobretudo no distrito de Viseu, onde não há fotojornalistas profissionais,
devidamente formados. Isto, apesar de considerar que há boas fotos de imprensa
em alguns títulos viseenses. Mas é pouco e desgarrado de um contexto — basta
olhar para as fichas técnicas dos jornais.
A ideia do dito estudo era aferir as relações dos repórteres com
os OCS nos seus vários aspectos; a importância que o fotojornalismo tem na
região em análise; o perfil dos que fazem a fotografia de imprensa e o seu
"estatuto" perante a profissão.
Os resultados reflectem alguma frustração daqueles que abraçaram
ou gostariam de abraçar esta "profissão de fé", como diz Mário
Mesquita, mas que acabam sem a esperança de o conseguir ou nas mãos de
empresários que aceitam jovens fotojornalistas como que por caridade.
Coimbra é o distrito que tem mais fotojornalistas - 13 -, num
universo de 44 Ocs escrita. Viseu, com 41 espaços editoriais, praticamente não
tem fotojornalistas nos seus quadros profissionais. Os acontecimentos mais
mediáticos da região são cobertos por profissionais deslocados dos grandes
centros, havendo quem trabalhe simultaneamente para quatro ou cinco OCS.
O estudo permite concluir que, com excepção dos jornais diários de
expansão nacional e agência Lusa, os órgãos da imprensa escrita negligenciam o
fotojornalismo, com algumas excepções.
Diz-se que o fotojornalismo está em crise — também ele. Não parece
que esta crise, a existir, seja motivada pelo desinteresse dos leitores — que
são, ou deveriam ser, a razão principal da nossa existência como profissionais
da imprensa. Há é uma certa lógica emanente dos contextos políticos e,
sobretudo, económicos e empresariais.
O problema é, acima de tudo, económico, embora não justifique
tudo. Por isso, recorre-se a todos os meios para emagrecer os orçamentos das
empresas de comunicação social, começando a poupança nas admissões de
fotojornalistas. Basta olhar para as redacções e constatar as proporções.
Muitas vezes, pura e simplesmente, não têm fotojornalistas nos quadros. Pode-se
perguntar: então, como é que aparecem imagens nos jornais?
Encontramos, também, na dinâmica das redacções, algumas das causas
da "crise do fotojornalismo". Michel Guerrin, crítico fotográfico do
«Le Monde» (curiosamente um jornal que tem preterido a imagem nas suas páginas,
actualmente em esforço de sobrevivência), afirma que o problema radica em que
"…quem decide que fotos se publicam não é quem tem o conhecimento". O
estudo confirma-o.
Outra condicionante para o fotojornalismo resulta do facto de, em
muitos jornais, mesmo de expansão nacional, os jornalistas desempenharem a sua
actividade de forma demasiado polivalente. O redactor é, simultaneamente,
fotógrafo, sem qualquer preparação técnica ou fotojornalística, utilizando
máquinas de baixa qualidade, expondo-se publicamente ao ridículo e contribuindo
para a desvalorização de texto e foto.
Tal como no automobilismo há quem corra em F1, F2, rallyes, ou,
simplesmente utiliza o veículo como utilitário, algo análogo acontece com o
fotojornalismo. Isto, pese embora o facto de haver algumas fotos de boa
qualidade, feitas por redactores e outros não fotojornalistas — a minha mãe
confeccionava excelente culinária, mas não era cozinheira.
Formação deficiente, universitária ou de outra natureza, é aquela
que não inclui e aprofunda os estudos fotojornalísticos. Ensina-se jornalismo,
ciências da comunicação ou da informação, mas as cadeiras de fotojornalismo são
ainda uma raridade. Há universidades de referência, onde o ensino do
fotojornalismo é uma miragem no plano curricular.
Paradoxalmente, a prática do fotojornalismo não se ensina, o que
não quer dizer que não se aprenda. É por isso que existem os estágios, a fim de
facilitar a aprendizagem de dentro para fora e não ao contrário. É no terreno,
dia a dia, que se faz, ou não, o fotojornalista.
Uma redacção tem de ser composta por jornalistas e fotojornalistas
formados correctamente e em situação de igualdade e dignidade académica. Têm em
comum o facto de serem autores e trabalharem um produto social da maior
importância.
Cruzando análises de vários estudiosos do fenómeno da comunicação
social, constata-se que, como qualquer ciência social, o jornalismo e o
fotojornalismo vivem uma situação de "carrefour". No entanto, não há
fotojornalismo sem fotojornalistas, sob pena de se descaracterizar a própria
essência do jornalismo.
As empresas de comunicação social escrita já não se assumem como
projectos jornalísticos românticos de outrora, mas sim como unidades
empresariais, com uma lógica pura de mercado (da publicidade e outras
influências), mais próximas dos interesses do público do que do "interesse
público", expressão cada vez mais desgastada e revivalista.
Não haja ilusões. Estão aí novas realidades. Mais cedo ou mais
tarde, o fotojornalismo terá o seu espaço bem delimitado. Só um fotojornalista
devidamente formado estará apto a cumprir a sua acção comunicacional. O
trabalho não poderá ser menorizado ou secundarizado. Fotografia e texto, na
imprensa, são as duas faces de uma moeda altamente cotada no mundo da
comunicação.
O fotojornalismo apresenta-se como um "retrato
desfocado" num presente "bastante tremido". É preciso dar-lhe a
possibilidade de se desenvolver ao ritmo das necessidades sociais — o que
actualmente não acontece.
É ao fotojornalista que cabe lutar pela dignificação da sua
profissão para atingir o nível desejado, que é aquele em que o leitor
estabelece com ele uma relação de lealdade e credibilidade — de memória,
afectividade, cumplicidade
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